sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Libertar o Presente



Nas suas Teses sobre a Filosofia da História, já Benjamin avisava que “o vício secreto da social-democracia, o conformismo, não afecta apenas a sua táctica política, mas também as suas perspectivas económicas.” Mesmo recordando que a social-democracia alemã dos anos 30 é consideravelmente diferente da que hoje resiste, não é difícil encontrar nesse conformismo a fonte do prolongado namoro que esta tem mantido com a expansão do liberalismo económico. Mas, de certo modo, e porventura devido ao período de excepcional progresso económico nas economias desenvolvidas do pós-guerra, a social-democracia europeia tem vindo a demonstrar um extraordinário atraso em responder à crescente dificuldade do Estado Social em sobreviver no seio do capitalismo globalizado, que acelera o tempo (e multiplica o mundo, ou não perseguisse perpetuamente factores de produção) mais rapidamente que os mecanismos redistributivos do Estado Social o podem desacelerar. Para usar uma imagem tão grata a todos aqueles que fazem da teoria económica um ramo da física teórica,  o desfasamento entre os fluxos de capitais e os fluxos de redistribuição impossibilita que os segundos alcancem nesse processo o cancelamento ou atenuação das desigualdades na acumulação de riqueza.
A social-democracia que, recordemos, foi viabilizada por uma agregação de visões políticas e ideológicas distintas, criou enfim as condições para o fortalecimento de tendências que têm vindo a minar a efectividade real dos sistemas de impostos, ao mesmo tempo que criou o terreno para o afrouxamento dos mecanismos que se encontram a jusante desse sistema redistributivo: a negociação entre sindicatos e patronato, o enquadramento jurídico das relações entre empregador e trabalhador e a regulação dos mercados e do movimento de capitais.
Pode ser encontrado um exemplo deste abandono em discussões, na academia e fora dela, acerca da distribuição temporal do factor trabalho. Já em Adam Smith, encontramos as raízes do pensamento económico que propõe a intensificação da especialização do trabalho e das trocas comerciais não para atingir a perfeita alocação de recursos, mas a expansão da produção, requisito fundamental para a diminuição do trabalho exasperante ou exaustivo (“the toil and trouble”). A novidade reside na solução: partindo do consenso generalizado de que este factor se encontra mal distribuído na sociedade portuguesa, e agravado desde o início da crise devido ao aumento do número de desempregados, do número de trabalhadores em regime de trabalho parcial, e também do número de trabalhadores que trabalham mais horas extraordinárias (as estatísticas do INE em relação à pretensa “recuperação” do mercado de trabalho revelam bem estes fenómenos), alguns sectores propõem a reorganização avulsa da distribuição da carga horária. Ora, esta visão ignora, na sua simplicidade, que as pessoas procuram cargas horárias mais elevadas exactamente para que possam atingir um nível de rendimentos superior, e consentâneo com os seus gastos.  A simples reconfiguração da distribuição do trabalho resultaria em transferências de rendimentos entre trabalhadores, melhorando uns mas piorando a condição de outros.
Para evitar este tipo de conflito, o objectivo da equalização da distribuição do trabalho deverá ser associado ao aumento do rendimento associado a este factor, que terá necessariamente de vir da remuneração ao factor capital. Por outras palavras, é preciso inverter a tendência de crescimento da importância do capital na distribuição de rendimentos. E partindo do pressuposto que a análise empírica de Piketty é fiável, então a social-democracia, que usou as políticas de redistribuição como moeda de troca para conceder maior liberdade de movimento aos factores de produção e aos agentes económicos, enfrenta agora uma nova crítica, a juntar ao lume não tão brando dos descontentes com o Estado Social: este, ocupado em combinar liberdade de oportunidades com a ascensão meritocrática, foi soltando as forças de acumulação de capital que ameaçam hoje, como no princípio do século XX, a promessa de progresso material para aqueles cujo mérito está no seu trabalho e nas suas ideias.
De resto, um dos paradoxos da actual vida político-económica, que perpassa quase todas as notícias, consiste na utilização do futuro como caução que impende sobre qualquer política do presente: somos permanentemente avisados do que nos acontecerá se não actuarmos conforme esperado. A consequência extrema da aceitação acrítica desta política do diferimento, de que vamos vendo sinais mais nítidos, é a de que, para não prejudicar o futuro, teremos de aceitar grandes sacrifícios no presente. Mas quanto mais o futuro é despudoradamente usado para sancionar uma perda actual, mais nos esquecemos que o presente determina largamente o porvir (veja-se como trocamos investimento em educação ou ciência pela promessa de financiamento, sob a égide das agências de notação financeira); e também que o passado, por via do regresso do capitalismo patrimonial – que em Piketty é revelado em todo o seu esplendor –, devora o futuro.
Mas nem o autor destas linhas escapa à força da Prognose, o de nos ser pedido que olhemos para a frente, tarefa que alguns querem desempenhar sem olhar para trás ou, usando novamente um conceito de Benjamin, para a “tempestade” que atravessámos até chegar aqui. Em suma: para que não vivamos num presente comprimido entre um passado que devora o futuro, e um futuro que actua como grande disciplinador, os sociais-democratas e outras forças progressistas deverão unir-se na recuperação de um ideal pragmático: o de estabelecer novas formas de controlo do político sobre o económico, e recentrar as discussões económicas nas noções de propriedade e (relativa) igualdade material, que legitimaram as ordenadas sociedades democráticas europeia e americana do pós-guerra – não se assustem os mais receosos, que isto é o que encontramos em John Rawls, o filósofo da sociedade liberal americana por excelência. Pois, em resposta a quem vê conflitos entre domínios, eu vejo o definhamento da disciplina que urge resgatar: a Economia Política. Porque, adulterando seriamente Musil, nós não temos economia a mais e política a menos, pomos é pouca política nas questões da economia.

(artigo publicado no DE) 

sexta-feira, 30 de março de 2012

Vontade de Obedecer

A Dama de Ferro é um filme insidiosamente político, porque se insinua apolítico e personalístico - o objectos aparentes são a menina, a adolescente, a mulher, a líder, a demente -, sujeitando décadas de política britânica e mundial a mera função de muleta da definição da aura e carácter especiais da Sra. Thatcher. É político porque, tratando a História como um adereço, elimina da compreensão do espectador as noções de evolução e processo históricos, dando cabo dos termos de ligação entre Política, Economia e História - como se estes não estivessem permanentemente entrelaçados. No filme, vemos um líder político tomar decisões sempre contra uma sociedade organicamente imóvel e plana, agindo e reagindo de modo automático, como que por reflexo, dando assim ares de novidade, originalidade e racionalidade às políticas thatcherianas, porque realizadas sob o acosso da algazarra popular e social.

É ainda uma peça singularmente dedicada ao culto do líder, da figura providencial, da força de vontade, do carácter, do carisma, da frugalidade, de uma maneira própria dos regimes utópicos que degeneraram em servilismo e na santificação de líderes "democráticos". Este tratamento, aliado à construção de uma personagem tão interessada em ideias e argumentos, e não em sentimentos (como em certo diálogo se afirma), mas que, ao longo do pobre argumento, é incapaz de sustentar uma posição numa base crítica bem fundamentada, fazendo valer a força das suas posições através de manifestações de autoridade, de resiliência e sacrifício, deveria bastar para que qualquer admirador sério da Sra Thatcher sentisse repulsa intelectual por este filme. Mas não chega: Se há no liberalismo uma certa vontade de desobedecer, no conservadorismo a vontade de obedecer é talvez ainda mais forte.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Provincianismo





É preciso dois cineastas portugueses vencerem três prémios no festival de cinema europeu (quero crer que o espanto nada tem que ver com o facto do prémio ser entregue na cidade que hoje representa, para todos os efeitos, o "poder estrangeiro") para a comunicação social subitamente acordar para a "grande qualidade" do cinema português, para uma horda de recém-chegados indefectíveis tecer loas ao cinema luso, à sua capacidade de sobrevivência em momentos tão difíceis para a nação, para ouvirmos defesas apaixonadas da cinematografia como sector exportável (veja-se até onde vai o desespero pela solução desta crise, de modo a que não se perturbe o statu quo). Se dúvidas houvesse quanto à desesperança e pequenez do ser hoje Português, dificilmente não seriam desfeitas pela insofismável necessidade que os portugueses - provincianos na Europa - têm de aprovação estrangeira, em todos os assuntos da vida pública e em tantos da vida privada. Nós não precisamos individualmente desse carimbo - precisamos dele enquanto colectivo, como de água para beber. É esse, cada vez mais, e aliado a uma nostalgia bacoca, o orgulho de ser Português. Apetece-me fazer como João César Monteiro, mas o meu nervo é demasiado temperado para esticar o dedo médio ao jornalismo larvar e à portugalidade humilde, demasiado humilde.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Keine politische Macht



Alcançado o acordo na Grécia, que garantirá a temporalmente indefinida sujeição grega, o ministro das Finanças alemão assegura ao seu homónimo Português a "preparação" germânica para um segundo "reajustamento": uma negociação que, invariavelmente, consistirá no definhamento (ou declínio, como diria Schulz) económico, no embrutecimento colectivo, na transferência maciça de riqueza, na quase inviabilidade portuguesa. Vítor Gaspar, diligente por instinto, agradece; Schäuble prossegue, movendo o eixo da curta conversa para a política interna alemã - a única, aliás, que importa neste momento das nossas vidas -, invocando os problemas de legitimação que a liderança política alemã enfrenta; de seguida Gaspar, curiosamente com um débito de palavras por minuto superior ao que pratica na língua mãe, afirma, assertivo, que Portugal tem feito progressos substanciais, e que naquele dia é necessário trabalhar.

Num minuto apenas emerge o futuro português de médio-prazo, a farsa democrática que protagonizamos, e a ambiguidade anti-identitária contemporânea, objectivadas respectivamente na aceitação de um segundo programa de empréstimo internacional, austeridade acrescida e provável começo de incumprimento organizado; na permanência tranquila de um governo que assenta o seu discurso na rejeição determinada, sufragada pelos portugueses, da renegociação do dito programa, enquanto que o seu mais relevante oficial não enjeita a possibilidade; na coexistência amena da sujeição ao poder financeiro exterior, do cantar da portugalidade, do pragmatismo de quem faz o melhor que pode, do idealismo de quem confia na possibilidade e nos méritos da transformação da sociedade portuguesa numa perfeita economia liberal (nem ordo nem ultra, simplesmente virada para os mercados) e na futura recompensa reflexa dos mercados, enfim, na ingenuidade, na esterilidade, na modorra e na debilidade.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sinais

"Há uma ordem financeira que movimenta muitas vezes mais capital que aquele que corresponde à produção de bens e serviços. Neste quadro, o keynesianismo já não funciona, não pode funcionar a nível nacional, e a nível global não tem interlocutores como os sindicatos. Tudo aquilo que representava a velha lógica fordista da produção não pode existir numa relação globalizada. Qual é a regra pela qual o capitalismo financeiro deseja desenvolver-se? Vivemos o risco de ver desencadear uma guerra. Nestas condições, em que não há uma saída objectiva para a crise, a guerra tornou-se uma possibilidade."

Antonio Negri

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

E a esquerda?

Sejamos francos. Há uma única razão para Pedro Passos Coelho se manter no poder. Agora que vemos finalmente um discurso cada vez mais unânime de que o caminho da austeridade pior do que levar a mau porto não leva a porto algum, esperaríamos talvez mais confluência da oposição ou mais actividade na rua. Nem uma nem outra. E a razão é a ausência de alternativa. A critíca ao modelo está feita há muito e, por termos visto o fundo do poço, não há argumento que valide a continuação desta politica. Mas nada de novo se avizinha. O Partido Socialista (sobre)vive entre um líder que todos - até o próprio - sabem ser a termo e as cinzas dos erros do seu antecessor. Pior que isso, sem uma visão do líder que se segue. O Bloco de Esquerda continua a seguir a trama da sua divisão e de 3 anos de más opções politicas onde tudo correu mal, e cujas sequelas não são ainda previsíveis. E o Partido Comunista, hermeticamente, continua a preferir o reduto dos seus votos invioláveis à agregação identitária da esquerda portuguesa. Não esperava nada de diferente desta aliança liberal oportunista que governa o país. Mas ninguém na esquerda portuguesa sai incólume de ver o país ser destroçado e vendido.

De acordo com Vasco Graça Moura

O bom senso, finalmente o bom senso. Há uma diferença entre ter uma carreira politica e ser politico de carreira. No meio da confusão, a voz grave de Vasco Graça Moura.

Areia para os olhos

Por enquanto na Grécia discute-se de quanto será a nova ajuda externa e quanto terão de ceder os gregos por isso. Por cá tenta ignorar-se o óbvio. Já todos se aperceberam que a politica de austeridade gera apenas mais auteridade. Uns por inépcia, outros por crença. Devemos preocupar-nos mais com os segundos, que finalmente deixaram de estar camuflados. Os lobos deixaram de vestir pele de cordeiro e andam à solta. A vender património público a preço de saldo. Quando tudo isto acabar dir-nos-ão que nada mais podia ter sido feito, que demos o nosso melhor, que tudo era inevitável. E estaremos mais pobres, como cidadãos e como país. Desmantelada a rede de serviços que tinhamos como prioritários - a água, a energia, a saúde - restar-nos-à pagar por tudo o que consideramos essencial sem termos, em boa verdade, lucrado nada com isso. E fazem-no pacatamente, assumidamente, envoltos por um discurso de inevitabilidade que ecoa em todas as bocas - as mesmas de há 30 anos para cá. O que devíamos discutir em relação à Grécia - como em relação a Portugal - era não em quanto estamos dispostos a ajudar mas como utilizar essa ajuda. A politica de austeridade, como anunciado, tem criado mais desemprego, menos riqueza e mais desigualdade.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Uma Arma Anacrónica



Alguém que frequente os transportes públicos poderá notar que, em geral, nada há de fundamentalmente novo na relação individual com o transporte, que o mesmo permanece prestado por empresas e assegurado por trabalhadores, que os cidadãos e os utentes (com incremento progressivo do segundo grupo) suportam os seus custos de funcionamento, que a economia sem estes não se desenvolve, que, portanto, a privação temporária dos meios de transporte colectivos pode ser arma útil para quem quer fazer valer os seus intentos, sejam estes quais forem. Terão ocorrido, em repetição e seguindo padrões normalizados, altercações entre passageiros, provocações a grevistas e aos que as furam, longas esperas, caminhadas e faltas injustificadas ao trabalho, representando no conjunto algo que até o mais néscio discerne como "consequências da greve", identificando facilmente as causas e um rol de efeitos.

O reconhecimento deste nexo causal de índole popular, das reacções que gera - variando quanto à intensidade entre a indiferença e a irritação - e dos motivos imediatos que lhe parecem adstritos - assentes no boçal mas honesto polinómio "a culpa é dos governantes", "eles não querem trabalhar", "os funcionários públicos são privilegiados" - deveria bastar para que o todo do movimento sindical e, principalmente, as estruturas partidárias que o sustentam e agregam, revissem seriamente a sua praxis, se ainda têm algum amor aos efeitos da acção política e social. A acção sindical padece hoje, ao nível do indivíduo, de um problema de percepção: o desacordo entre o objecto teórico da mais extrema acção sindical e a percepção final do objecto é evidente e tremendo, gerando a desconfiança nos sujeitos que a percepcionam. Também no plano colectivo a greve, enquanto acção, é plenamente ineficaz, mas em boa parte devido à compressão que esta sofre por via da superabundância da disconexa informação contemporânea: qualquer acto radical colectivo, hoje como sempre, tem de ocupar todo o espaço disponível e criar novo espaço onde ele não existe.

A greve, encarada a priori, conserva uma relação adequada entre causa e efeito; contudo, assim que é posta em prática, as suas causas e efeitos torcem-se o suficiente para que a maioria, inteligente e inconscientemente, a conceba como ineficaz, anacrónica e até contraproducente. E não há praxis que deva subsistir por comiseração ou saudosismo.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Os Problemas da Zona Euro

Mesmo sabendo que são sempre perigosos, pois ocultam sempre mais do que revelam, e ainda que possam não corroborar completamente as suas afirmações, os gráficos simples que Krugman publica colocam em causa, sem fanfarra, meia dúzia de mitos da economia política actual.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Notas sobre um acordo (3)

Na fase do ciclo económico em que nos encontramos, com a economia portuguesa a trabalhar abaixo do seu potencial (isto é, com recursos de capital e trabalho não utilizados) mas ainda em processo de diminuição do seu produto, em que as totalidade das empresas portuguesas tem de suportar custos de capital crescentes, conservando apenas as de maior dimensão alguma capacidade de investimento quer pela movimentação de reservas ou lucros, quer pelo financiamento bancário, dificilmente se pode esperar que a diminuição dos custos de trabalho e alguma flexibilização do despedimento possa resultar no aumento global do emprego. Mesmo admitindo movimentos contrários em algumas empresas e sectores, é bastante razoável admitir que a economia portuguesa, como um todo, aproveitará para reequilibrar os custos com trabalho e capital de forma a que se mantenha a o processo de diminuição do nível do segundo factor.


Como a diminuição da despesa acontece simultaneamente nos sectores público e privado, e o governo não pode financiar directamente a economia a um custo inferior ao praticado pelo sector privado, as alterações ao código laboral apresentam apenas um mérito prático: permitir que, no curto prazo e ao nível da empresa, se equilibrem temporiamente as contas pelo corte nas despesas com o factor trabalho.


Neste cenário, só o investimento directo estrangeiro (ou, teoricamente, a diminuição do salário mínimo) pode contribuir para o aumento do emprego. Conceber, contudo, que Portugal está em condições de atrair esse investimento, tendo em conta que baixando o peso dos salários nos tornamos cada vez mais apetecíveis para os sectores intensivos em trabalho, dos quais a nossa economia se deveria ter afastado e com os quais já não podemos competir, é nada mais que uma crença fundada num tosco dogma.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Notas sobre um acordo (2)

Analisando em detalhe as alterações propostas, bem se vê que, de forma directa ou indirecta, todo o acordo consiste na diminuição da remuneração ao factor trabalho: o programa político-económico da economia capitalista ocidental das últimas décadas. Desde a década de 80 que a remuneração a este factor tem decrescido, e a remuneração ao factor capital aumentado; este acordo apenas segue uma tendência que, pela sua dimensão, dificilmente pode ser desafiada a nível local. O acordo é simultaneamente um desastre do ponto de vista da retribuição ao trabalho, e uma inevitabilidade que resulta das condições estruturais sobre as quais assenta a economia moderna, com elevada mobilidade do capital e baixa mobilidade do trabalho.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Notas sobre um acordo (1)

O acordo de concertação social alcançado assemelha-se àqueles acordos de capitulação, em que a parte derrotada reconhece uma série de perdas e concessões em contrapartida do direito à existência. A possibilidade de permanecer no seu posto, apesar do despedimento facilitado, cresce em razão do aumento da competitividade da economia e do investimento externo que a diminuição dos custos do trabalho permite. Daí os seus promotores frisarem tão abundantemente a ideia de que os trabalhadores também ganham porque "mantêm o direito ao trabalho".

domingo, 15 de janeiro de 2012

O assalto à saúde

"So for those who wish to destroy the European model of the welfare state, the structural weakness of social welfare in the United States offer an attractive model. First, create an identifiable group of underserving poor. Second, create a system in which the rich see little benefit flowing back to them from their taxes. Third, diminish the role of trade unions, portraying them as pursuing the narrow interests of their members rather than, as is actually the case, recognising that high rates of trade union membership have historically benefited the general population"

Martin McKee e David Stuckler, no British Medical Journal.

Portugal e a União (2)

Não há acção política possível que não tenha o seu contrário, a inacção, sempre representada como acto político consumado; não há, portanto, vazio ou omissão de cariz político que se possa tomar como acidental ou negligente. Saber se a inacção incorpora uma teoria política é assunto diverso, mas dificilmente um observador atento e crítico se pode permitir esquecer que uma ausência é, enfim, um movimento mais no sentido do laissez-faire.

A simetria entre uma acção e sua negação é, em Política, um simulacro da oposição entre A e não-A, que na sua impura forma lógica assume afinal a oposição entre A e B. Por outras palavras, por via do universalizante, a inacção política não é a negação de uma acção, mas uma outra, nova e incompatível.

Daqui ser-nos-ia lícito partir para a releitura de uma volumosa quantidade de argumentação política usada nos mais variados campos, mas um exemplo basta para mostrar os efeitos possíveis, sobre a dialética política, desta reconfiguração: o debate quanto à tomada de posição do Estado Português no âmbito da transformação europeia em curso.

Do lado da acção, alguns defendem que Portugal deve, na medida das suas possibilidades, procurar aliados no seio da União Europeia que com ele partilhem certas características - no plano económico perspectivas de medíocre crescimento económico, problemas de solvência; no político, a sujeição a interferência externa; no geográfico, a localização periférica - e estejam de acordo quanto a um número razoável de objectivos, incluindo certamente aqueles relacionados com as características que os tornam tão semelhantes, mas também o desejo de impedir uma Europa definida pelo eixo franco-alemão. Do lado "oposto", afirmam outros que Portugal não deve estabelecer sequer esse tipo de afinidades, pois isso compromete o caminho sacrificial que Portugal aceitou fazer, põe em causa o alcançar das metas impostas, e não tem reais possibilidades práticas de sucesso.

Excluindo, para simplificação, a vital discussão quanto ao fundamento de todos os argumentos envolvidos, sobra-nos o esqueleto da hipotética acção política: agir ou não agir. Ora, retomando o motivo inicial, a assunção de uma política omissa no que respeita à questão da aliança com outros estados-membro volve-se acção deliberada de nada fazer, movimento positivo de continuar um percurso individual no meio de uma crise sistémica. Neste caso como em tantos outros, a subtil recolocação dos termos em que se traduz a liberdade de acção traz consigo outros modos de julgar, quanto à virtude, qualquer das opções tomadas. É que se agir é ingénuo e inútil, e não agir é sensato e pragmático, agir solitariamente é gesto contínuo de autoflagelação.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Mérito e Mercado

A retórica liberal, concretamente na sua ligação com a ascensão meritocrática, está como nunca disseminada por toda a parte onde se podia infiltrar; contudo, não há paradigma meritocrático que não seja o espelho das condições estruturais, mormente de dimensão, do sistema que habita. No caso português, a retórica do "elevador social", charneira do pensamento social-democrata, depende quase directamente da implantação desse paradigma, da sua extensão e completude. E paradoxalmente, podendo-se afirmar que não há verdadeiramente cultura meritocrática em Portugal, que se possa dizer transversal e universal, ela ainda assim subsiste melhor nas posições intermédias da nossa economia, onde os mecanismos de mercado de facto funcionam e a selecção parece lhes obedecer, enquanto que, nas elites que tanto a apregoam, a rotação de nomes e cargos acontece em pequenos círculos de poder, na ausência plena de qualquer mecânica de procura e oferta. A retórica meritocrática que certas elites liberais ensinam só se aplica nos subúrbios do seu meio, e não no seu centro.

A meritocracia não tem condições de existência universal no pequeno mundo Português: a mão invisível de Smith, em círculos restritos de poucas pessoas, torna-se na extremidade de um corpo visível, de uma pessoa por todos os membros conhecida.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Sobre a falácia

"In particular, since euro-area countries can’t print money even in an emergency, they’re subject to funding disruptions in a way that nations that kept their own currencies aren’t — and the result is what you see right now. America, which borrows in dollars, doesn’t have that problem. The other thing you need to know is that in the face of the current crisis, austerity has been a failure everywhere it has been tried: no country with significant debts has managed to slash its way back into the good graces of the financial markets. For example, Ireland is the good boy of Europe, having responded to its debt problems with savage austerity that has driven its unemployment rate to 14 percent. Yet the interest rate on Irish bonds is still above 8 percent — worse than Italy." 

Legend of the Fail, por Paul Krugman, no Herald Tribune

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ortodoxia

Uma notícia que pouco eco cá no protectorado mereceu: 70 alunos da disciplina de Economics 10, leccionada por Gregory Mankiw (um dos autores mais importantes no plano curricular da NOVA), abandonaram a aula poucos minutos após o seu início, numa acção planeada contra o que os aderentes consideram o enviesamento ideológico de uma disciplina introdutória fundamental. Atalhando, estes alegam que, de um curso para muitos obrigatório e que se pretende que constitua o primeiro passo tendo em vista o aprofundamento dos conhecimentos dentro da Ciência Económica, Mankiw transforma-o numa disciplina que transmite teoria económica fortemente marcada por preceitos ideológicos (concretamente, e com as características americanas, o conservadorismo) ocultos sob a capa da não-ideologia, assente em premissas duvidosas ou mesmo falsas e, acima de tudo, responsável pelo crescimento da desigualdade de rendimentos registada nos últimos 40 anos.

Não é especialmente entusiasmante a ideia de um esboço de levantamento estudantil no coração das maiores universidades americanas, de cujos departamentos têm saído boa parte dos líderes de uma certa ortodoxia doutrinária que definitivamente retirou à Economia o que esta inevitavelmente tem de Política. E não o é devido à sua própria constituição: um movimento minoritário de estudantes ainda nos primórdios da sua formação teórica resultaria há umas decadas atrás, quando a regurgitação que o "bom-senso" bovino da maioria impõe era muito lenta, quer em velocidade quer em alcance; e isto porque a descomunal máquina dos meios de comunicação, hoje no essencial grosseiros sistemas de propaganda, simplesmente não existia. Qualquer movimento contemporâneo, mesmo que solidamente fundado em teoria nova e correspondendo ao espírito gregário de um grupo, embate inevitavelmente contra a parede do discurso homogeneizado e próximo da mecânica simples do senso-comum, morrendo quase à nascença, ou sobrevivendo em pequenos grupúsculos. Hoje, manobras de agitação de alunos frustrados e ainda carentes de uma ideologia vária não só falham em enfrentar verdadeiramente a muralha do "bom-senso" como, por via de uma certa estultícia, arriscam tornar-se aquela brisa que, chocando contra uma formação de ar maior, apenas a alimenta e volve mais violenta.

No passado, elites dominantes - e a visão do mundo que rebocam - podiam ser substituídas por movimentos ascensórios de jovens irreverentes, apoiados em massas mais ou menos ignorantes em busca de ganhos colectivos. Hoje, a insolência da juventude integrada nas mesmas estruturas cujas fundações critica dá apenas um ar de riqueza e pluralidade a certos meios académicos fortemente (e dissimuladamente) ortodoxos. Apenas outros meios académicos, livres ainda dessa ocupação doutrinária, podem por a nu a ortodoxia científica de uma maioria.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Portugal e a União (1)




O acordo alcançado na última cimeira europeia é o primeiro passo de um processo político não-democrático de sujeição. Os modernos burocratas europeus, os idiotas úteis de alguém, continuam a conceber alterações ao funcionamento da União, à sua orgânica, no fundo, à sua essência e ao que dela emana. Fazem-no com medo permanente da consulta popular.

Todas as estruturas europeias retiraram soberania aos países e raramente o processo de integração europeia, no pós-guerra, resultou da vontade popular directamente expressa, sendo quase todos os passos dados suportados na ratificação indirecta que as eleições nacionais proporcionaram. Hoje, a integração prudente, respeitando e seguindo o que as nações europeias tidas em conjunto poderiam realmente suportar, sob o espectro da desagregação, é pouco mais que um tolo anseio. Como a integração monetária, as políticas de desincentivo à produção na periferia europeia e o ilusório efeito de riqueza proporcionado pelos fundos estruturais resultaram, 20 anos após Maastricht, no aprofundamento das diferenças na União.

Enquanto havia convergência, a Europa agregava-se. Quando os primeiros casos de divergência entre membros da União se começaram a manifestar, cabia a esses países mudar. Agora que a divergência é partilhada por dois clubes de países, não há agregação que subsista. A partir daqui, os países em declínio real seguirão tudo o que a outra parte, a excedentária, lhes impuser. É racional se se admitir que o declínio é temporário. Mas algum pragmatismo e (boa) teoria económica, revelando que o retrocesso passageiro poderá durar décadas, torna irracional a aceitação destas novas políticas.

Se de facto existe ainda uma identidade a que possamos chamar nossa.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Segurar a saúde

"Some of the main reasons for the high primary health-care costs are the repetition of tests and prescriptions due to poor information transfer between providers and the vast induced demand for health-care services. The latter is perhaps the most important factor and can be explained by the large number of specialists—the highest among countries of the Organisation for Economic Cooperation and Development—and the ineffectiveness of the existing control mechanisms of health insurance funds who incur the costs."

No Lancet, sobre o aumento da despesa grega com a saúde, apesar de piores resultados globais em termos de saúde da população. Ou porque não ter um seguro, apesar da publicidade, apesar da Fátima Lopes, apesar da propaganda, apesar do marketing. Quando nos debruçarmos sobre os números, perceberemos que na medicina das seguradoras não há lugar para a saúde, só para o negócio.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A saúde grega


"Overall, the picture of health in Greece is concerning. It reminds us that, in an effort to finance debts, ordinary people are paying the ultimate price: losing access to care and preventive services, facing higher risks of HIV and sexually transmitted diseases, and in the worst cases losing their lives. Greater attention to health and health-care access is needed to ensure that the Greek crisis does not undermine the ultimate source of the country’s wealth—its people."

Para ler no Lancet, uma das duas revistas médicas de referência a nível mundial. Não é que estejamos a perder os cuidados de saúde. É que nos estão a roubá-los.