quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A Autobiografia de Nicolae Ceausescu



Uma autobiografia que é uma biografia, um filme construído quase exclusivamente pela selecção de cenas da vida pública e privada de Ceausescu, sem narração para além daquela que a montagem e sequência propõe, um documentário que é um não-documento: é, enfim, uma peça de ficção que, num arco de ascensão e queda tão querido dos historiadores que entulham as livrarias de metros de papel, mostra a ascensão de um ditador em plena Guerra Fria, a imposição e aceitação de uma ortodoxia, a adopção de rituais e métodos propagandísticos comuns aos regimes sino-soviéticos (mas também em boa medida, e como tão facilmente nos esquecemos disto, aos contemporâneos regimes ocidentais), a flexibilidade das grandes e das pequenas potências na tessitura dos equilíbrios políticos, económicos e militares (discursos de Nixon e de Charles de Gaulle na Roménia comunista, as visitas de Ceausescu aos países do Pacto de Varsóvia), a efabulação quanto ao progresso de uma nação por meio de uma retórica que Górgias tão bem manejaria, a transposição do doutrina marxista-leninista para um caleidoscópio de formas nacionais de comunismo real, mas, ainda e apesar do resto, as idiossincrasias de Ceausescu enquanto líder e as do regime comunista romeno enquanto subordinado de Ceausescu - o líder, não ele-próprio.

Quando nos aplicamos num desporto como amadores, raramente conseguimos evitar seguir certa ordem de instintos básicos. Saber isto talvez diminua a tarefa de compreender por que, num dos mais significativos excertos do filme, podemos ver Ceausescu, durante um jogo de vóleibol durante o qual ocupa a posição de passador, junto à rede, jamais esboçar qualquer tentativa de combinação com os seus companheiros, optando sempre por atacar a bola, devolvendo-a para o campo adversário. Certos espíritos, na voracidade de um jogo que apela ao instinto, recusam sempre colectivizar-se.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Ciência Nova

Dia 30 de Setembro, Lisboa, 9:00, Auditório 2, Fundação Calouste Gulbenkian: uma conferência para uma outra ciência económica, para uma outra política económica, para um pós-austeritarismo. Programa e inscrição.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Movimento na Estação da Baixa-Chiado



Há muito tempo que em Portugal se encontra firmemente enraízado um tipo de argumento provinciano, e simultaneamente evidência do nosso atraso, que consiste na comparação com o estrangeiro. Dizemos que é assim na França, em Inglaterra, nos E.U.A., na Alemanha, raramente com fins críticos, mas antes como invocação de uma autoridade: lá fora é assim, portanto cá devemos fazer o mesmo.

A mesma atitude saloia está presente na ambição apenas aparentemente inversa: a ânsia da inovação. Também aqui a pressão nasce não da necessidade, que aguçaria o engenho, mas do sentimento de menoridade, que nos empurra para o pioneirismo, o mecanismo que gera o progresso no estrangeiro.

O acordo entre a Metro de Lisboa e a PT revela precisamente a realidade desse argumentário: eis uma "inovação", um projecto pioneiro, que torna de facto privada uma estação que é pública, que esfrangalha a relação com a toponímia da cidade, que diminui a Língua Portuguesa, que, com os seus néons e símbolos, projecções de vídeo e hipotéticas demonstrações de produto, descoroaça uma arquitectura superior, que, enfim, abre o caminho a todo o tipo de capitulação futuro do público perante o privado.

Depois desta decisão, está criado o precedente que não deixará qualquer espaço ou instituição públicas a salvo de uma futura intervenção da mesma natureza. Amanhã outra estação, depois uma avenida, a seu tempo uma câmara, uma assembleia, a própria República.

Que movimento de maior amplitude se pode entrever? O de uma organização económica que, pelos suas premissas e resultados e também pela sua retórica, tem transformado os Estados no regulador dos anseios liberais (europeus) e no moralizador dos anseios conservadores, através de orçamentos eternamente deficitários, suborçamentação intencional e ruinosas concessões ao sector privado; o de um modelo económico que permite estabelecer um subtil processo de transferência de recursos públicos para os privados, não para uma distribuição plenamente social-democrata, mas para uma concentrada nos grandes grupos económicos. É uma estrutura de âmbito mais vasto que a do pensamento económico que a gerou: é uma vontade que, por meio de teoria económica, tem como fim o colapso do poder político e a ligação do indivíduo a uma estrutura ideal e absoluta.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A eterna ignorância

Não sei se me espanta mais a ignorância, se a intolerância. Talvez o facto de ainda causa espanto, vindo de onde vem. Não vem mal ao mundo que a Igreja se mostre intolerante ou descabida. A qualquer um com um mínimo de consciência histórica, o facto só pode parecer repetido. É a ignorância que já não se aceita. Que não aceitem a homossexualidade ou sobre ela se mostrem bárbaros, é decisão que a cada um compete tomar. Que insistam em falar dela como doença - desta vez com várias gravidades, quem sabe prognósticos - é estar várias décadas atrasado. Não há como explicar a esta gente que está errada. Quem não percebeu à primeira, não vai saber ler agora.

Lá por fora

Krugman a ler a Europa.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A boa politica e a má politica

Serve o presente para expor que, numa altura em que se corta cegamente, nem toda a cegueira vem a propósito. Neste caso, a notícia de que o estado vai deixar de comparticipar três vacinas. Não é o simples facto de se cortar na despesa - tomamos todos hoje por ponto assente que o mal é necessário, à conta da repetição diária do facto. É a escolha de onde se cortar. A escolha da vacina contra o HPV é uma escolha inteligente. Primeiro, a vacina tem poucos estudos a longo prazo - o que faz com que não se saiba quanto tempo dura a protecção conferida, ou até se exige reforços de vacinação. Segundo, é uma vacina extremamente cara - não se trata aqui de saber se as mulheres a devem tomar, que devem, mas saber se é custo-eficaz, um dos requisitos para fazer parte de um plano nacional de vacinação. Terceiro, não só a vacina não abrange todas as estirpes de virus como os estudos epidemiológicos que levaram à construção da vacina não são portugueses - que é como quem diz que a vacina não é dirigida necessariamente contra as estirpes mais comuns em Portugal. Não se trata de não defender a vacina - que a defendo - nem de afirmar que não deve estar no PNV mas apenas de perceber que a sua exclusão seja uma medida perceptível no contexto em causa. O mesmo, até prova médica em contrário, é impossível sustentar sobre a vacinação para a Hepatite B. Ou sobre os cortes infligidos à transplantação - uma medida que, para além de medicamente aberrante, encarecerá ainda mais o serviço do estado, assim se façam os estudos sobre os custos da diálise mantida nos doentes não transplantados. Sabe qualquer pessoa que utilize uma tesoura: o acto de cortar não é em si mau, só convém não o fazer de olhos fechados. Às vezes corta-se um dedo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A saúde custo-eficaz II

Ou o que não fazer, numa visão com tanto de troikista como de jornalística, ainda assim  aparentemente económica. Que não haja enganos: não é possível manter um serviço de saúde com qualidade para o utente com tamanho corte numa das suas áreas mais centrais. Este não é o "estado-gordo". Este é o estado social mais básico a ser desmantelado. Ao serviço de alguns, em prejuízo de todos.

A saúde custo-eficaz

Uma visão técnica, nem troikista nem jornalística, mas ainda assim económica - sim, é possível. No New England Journal of Medicine.