segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Suicídio matemático / Decepamento político


O artigo de Ambrose Evans-Pritchard, que por vezes revela uma certa germanofobia, publicado no Telegraph, apresenta a maior parte dos elementos que fazem do plano económico-político das actuais elites europeias um acto de auto-flagelação: ignora o problema económico fundamental (desequilíbrios nas balanças comerciais e de pagamentos entre países cuja moeda própria, se a possuíssem, deveria estar sobrevalorizada face ao euro, e países que, analogamente, deveriam ver a sua hipotética moeda desvalorizada); impõe uma receita que por desincentivar a produção e o crescimento económico acaba por tornar a sustentabilidade do pagamento da dívida uma miragem; recusa dotar a zona Euro dos mecanismos necessários para o funcionamento de uma zona monetária óptima (essencialmente harmonização fiscal e orçamento comum); supõe implicitamente uma maciça transferência de riqueza do Sul para o Norte, e da Periferia para o Centro; gera no imediato mais desemprego e diminuição de rendimentos no Sul e, no curto prazo, no Norte, que depende do mercado interno europeu; alimenta velhos rancores, separando nações extraordinariamente antigas que haviam aceite a integração numa Europa unida e impulsionada pelo consenso do pós-guerra.

Como não é crível que o fim da prosperidade e convergência internas acabe por, numa perfeita inversão, unir a Europa, todo o processo deverá levar à reformulação da mesma. Então (e surgem já sinais disto), começará a surgir dos países do Centro um novo entendimento, contrário ao actual, reconhecendo a falência da austeridade como plano económico. Nesse momento, ninguém duvidará de que somos governados por um Primeiro-Ministro e um Ministro das Finanças que são, no seus máximos, um ignorante comissário político e um exímio funcionário de responsabilidades intermédias.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A ignorância não se medica, educa-se

A educação foi do melhor que a República trouxe. Não para todos. Agora em português, e mais devagar. Pondo de fora os erros gramaticais - a que o I nos tem vindo a habituar - há muito que merece ser desmascarado no editorial - poderemos chamar-lhe assim? - desta edição.

"Basta ver os números para se perceber que o monstro também chegou à saúde, com todos os vícios de quem gasta o que não tem e sempre que precisa de mais dinheiro vai aos bolsos seja de quem for para suportar a despesa". Primeiro ponto, para que saibamos já ao que vamos: a saúde nunca teve, não tem e nunca terá, enquanto for bem feita, o propósito de gerar dinheiro. Tem o único propósito de oferecer o melhor tratamento médico possível à população. É bem verdade que isto é diferente de não gastar dinheiro e que os recursos são limitados. Esta é outra discussão - a da gestão do dinheiro da saúde - que é técnica e que a pessoa em causa não tem, notoriamente, capacidade de ter. Envolve a noção do que é uma medicina clinica por oposição a uma medicina em que se pedem exames antes de colher uma anamnese - procure no dicionário António Ferreira, vai ver que é um livro fantástico. Envolve ainda o estudo aprofundado, critico e comparativo da saúde pública versus a saúde privada. É um debate técnico, comparativo e uma escolha politica. Nunca poderá ser um debate opinativo.

"Bastou o ministro dizer que ia reduzir para metade os incentivos aos médicos para a esquerda rasgar as vestes na praça pública, dois responsáveis baterem com a porta e muita gente lamentar por antecipação a morte de pessoas às mãos de um homem gelado que só pensa em números e em cortes no sagrado SNS. Afinal, almas sofridas da esquerda, Paulo Macedo apenas anunciou o corte de 50% dos incentivos pagos aos médicos. Não decretou a redução dos transplantes". Talvez fosse salutar espreitar, uma vez, uma escala de médicos para transplante - como para muitas outras especialidade. Isso envolvia perceber que há um número reduzido de médicos disponíveis 24 horas sobre 24 horas para um cirurgia. Não só estamos a falar de um dos trabalhos mais especializados que o país fornece, como estamos a falar de uma disponibilidade a tempo inteiro. Paulo Macedo não decretou o fim dos transplantes, é certo, mas quando o decretar não escreverá um edital em Diário da Républica dizendo "Eu, Paulo Macedo, decreto o fim dos transplantes". Fará o que, lentamente, tem vindo a ser feito. Desmantelar a rede médica, cortando salários e diminuindo pessoal até que se torne incomportável sustentar um dos melhores serviços fornecidos em Portugal. Outro exemplo: com o fim do pagamento de horas extra-ordinárias, a grande maioria dos médicos hospitalares acaba por fazer prolongamentos e urgências internas - isto é, assegurar o serviço de enfermaria em horário pós-laboral - em regime completamente pro-bono. Não estamos a falar de empresários milionários a jogar golfe em resorts enquanto os trabalhadores criam lucro, é importante que se perceba.

"E se está bem cotado a nível mundial, o que é uma verdade, também deve essa qualidade ao sector privado. Sim, mais de 42% dos serviços prestados pelo SNS são, afinal, da responsabilidade do sector privado". Ah, os números, os maravilhosos números que podemos usar em proveito de um argumento. Mesmo quando não fazemos ideia daquilo que estamos a falar. A grande parte dos serviços prestados pelo sector privado são actos médicos de reduzida gravidade. Ou seja, as pessoas recorrem a uma consulta, pela qual teriam de esperar mais tempo no SNS sem prejuízo calculado na sua morbilidade. Pior que isto, quando recorrem com um problema de facto grave, muitas vezes são reenviados para o hospital público mais próximo por não terem cobertura suficiente no seu seguro ou meios de pagar os custos exorbitantes. O privado arrecada o dinheiro e despeja a factura no erário público - ah, o tão amado sector privado de António Ribeiro Ferreira. Mas há pior e mais importante. Porque por trás dos números - que apenas referem a quantidade de atendimentos, esquecemos o mais importante - os números, sempre os números - que é a qualidade do acto médico. O sector privado consegue - única e exclusivamente por pressões economicista de quem gere o sector - inverter a lógica da saúde do doente para o lucro. Isto faz com que por vezes se peçam exames desnecessários, porque são caros e o utente paga, e outras vezes não se peçam exames cruciais, porque são caros e o seguro não cobre.

Escreve pior quem não pensa o que escreve.

Ainda, uma vez mais, e enquanto necessário, a saúde.

Enquanto nos afogamos entre as opiniões dos economistas - e eles são cada vez mais, estão por todo o lado, andam aos pares e dizem, na televisão, quase todos o mesmo - e o medo de um futuro pior, há um contínuo ataque ao funcionamento público sob a desculpa da inevitabilidade. Quando toda a poeira assentar, veremos a maioria da riqueza pública a funcionar em nome do enriquecimento de alguns. Este é um dos maiores ataques concertados de que há memória. Observámos complacentes quando transferiram o nosso tecido de produção para o centro europeu em troca de uns temporários subsídios e agora encolhemo-nos com medo das palavras grandes que nos atiram enquanto saqueiam o que nos sobra de funcionante. O que era do interesse de todos está a transformar-se na nova forma de enriquecimento de alguns. E porque há uma diferença entre roubarem a riqueza dos nossos filhos ou sonegarem o seu acesso ao melhor tratamento médico, interessa antes de tudo defender aquilo a que um dia chamámos, orgulhosamente, Sistema Nacional de Saúde.
Arnaut continua ingloriamente a gritar contra a horda de comentadores que, entre as 8 e as 10, povoam os paíneis das várias televisões. É importante que se discuta tecnicamente o que é o SNS, para que serve e qual a sua qualidade médica - se podem irromper na televisão e mudar o vocabulário social com palavreado económico, que se use esta urgência técnica para discutir também tecnicamente a saúde. Mas é importante que se saiba também que ele funciona bem e é bem visto pelos seus utentes. Quando os dados de hospitais públicos e de parcerias público-privadas saírem, teremos matéria mais do que suficiente para invadir a Sic Notícias.