sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A ignorância não se medica, educa-se

A educação foi do melhor que a República trouxe. Não para todos. Agora em português, e mais devagar. Pondo de fora os erros gramaticais - a que o I nos tem vindo a habituar - há muito que merece ser desmascarado no editorial - poderemos chamar-lhe assim? - desta edição.

"Basta ver os números para se perceber que o monstro também chegou à saúde, com todos os vícios de quem gasta o que não tem e sempre que precisa de mais dinheiro vai aos bolsos seja de quem for para suportar a despesa". Primeiro ponto, para que saibamos já ao que vamos: a saúde nunca teve, não tem e nunca terá, enquanto for bem feita, o propósito de gerar dinheiro. Tem o único propósito de oferecer o melhor tratamento médico possível à população. É bem verdade que isto é diferente de não gastar dinheiro e que os recursos são limitados. Esta é outra discussão - a da gestão do dinheiro da saúde - que é técnica e que a pessoa em causa não tem, notoriamente, capacidade de ter. Envolve a noção do que é uma medicina clinica por oposição a uma medicina em que se pedem exames antes de colher uma anamnese - procure no dicionário António Ferreira, vai ver que é um livro fantástico. Envolve ainda o estudo aprofundado, critico e comparativo da saúde pública versus a saúde privada. É um debate técnico, comparativo e uma escolha politica. Nunca poderá ser um debate opinativo.

"Bastou o ministro dizer que ia reduzir para metade os incentivos aos médicos para a esquerda rasgar as vestes na praça pública, dois responsáveis baterem com a porta e muita gente lamentar por antecipação a morte de pessoas às mãos de um homem gelado que só pensa em números e em cortes no sagrado SNS. Afinal, almas sofridas da esquerda, Paulo Macedo apenas anunciou o corte de 50% dos incentivos pagos aos médicos. Não decretou a redução dos transplantes". Talvez fosse salutar espreitar, uma vez, uma escala de médicos para transplante - como para muitas outras especialidade. Isso envolvia perceber que há um número reduzido de médicos disponíveis 24 horas sobre 24 horas para um cirurgia. Não só estamos a falar de um dos trabalhos mais especializados que o país fornece, como estamos a falar de uma disponibilidade a tempo inteiro. Paulo Macedo não decretou o fim dos transplantes, é certo, mas quando o decretar não escreverá um edital em Diário da Républica dizendo "Eu, Paulo Macedo, decreto o fim dos transplantes". Fará o que, lentamente, tem vindo a ser feito. Desmantelar a rede médica, cortando salários e diminuindo pessoal até que se torne incomportável sustentar um dos melhores serviços fornecidos em Portugal. Outro exemplo: com o fim do pagamento de horas extra-ordinárias, a grande maioria dos médicos hospitalares acaba por fazer prolongamentos e urgências internas - isto é, assegurar o serviço de enfermaria em horário pós-laboral - em regime completamente pro-bono. Não estamos a falar de empresários milionários a jogar golfe em resorts enquanto os trabalhadores criam lucro, é importante que se perceba.

"E se está bem cotado a nível mundial, o que é uma verdade, também deve essa qualidade ao sector privado. Sim, mais de 42% dos serviços prestados pelo SNS são, afinal, da responsabilidade do sector privado". Ah, os números, os maravilhosos números que podemos usar em proveito de um argumento. Mesmo quando não fazemos ideia daquilo que estamos a falar. A grande parte dos serviços prestados pelo sector privado são actos médicos de reduzida gravidade. Ou seja, as pessoas recorrem a uma consulta, pela qual teriam de esperar mais tempo no SNS sem prejuízo calculado na sua morbilidade. Pior que isto, quando recorrem com um problema de facto grave, muitas vezes são reenviados para o hospital público mais próximo por não terem cobertura suficiente no seu seguro ou meios de pagar os custos exorbitantes. O privado arrecada o dinheiro e despeja a factura no erário público - ah, o tão amado sector privado de António Ribeiro Ferreira. Mas há pior e mais importante. Porque por trás dos números - que apenas referem a quantidade de atendimentos, esquecemos o mais importante - os números, sempre os números - que é a qualidade do acto médico. O sector privado consegue - única e exclusivamente por pressões economicista de quem gere o sector - inverter a lógica da saúde do doente para o lucro. Isto faz com que por vezes se peçam exames desnecessários, porque são caros e o utente paga, e outras vezes não se peçam exames cruciais, porque são caros e o seguro não cobre.

Escreve pior quem não pensa o que escreve.

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