sábado, 27 de agosto de 2011

O monstro pardo.

Um texto de José António Saraiva tem chamado a atenção. Não pelo pouco jeito para a "prosa modelar" - que, ao contrário de uma artigo meramente jornalístico, é bem mais exigível a um artigo de opinião - mas pela intolerância. Nada disto é de espantar vindo de quem vem, mas o texto é exemplificativo de um tipo de pensamento que ainda opera numa parte conservadora da sociedade portuguesa.

Pouco me interessa quem tem ou não razão na questão entre Carlos Maceno e Jorge Nuno de Sá. Essa é uma questão judicial. O que é da esfera pública é a opinião de JAS, que aliás é simbólica. Todo o texto transpira a negação do direito do outro à sua liberdade sexual. O que lhe interessa não é a suposta agressão matrimonial - tema a que faria melhor dedicar-se do que a este - mas o facto de esta ter acontecido num casamento gay. Espanta-se por já estarem divorciados após a luta por esse direito para a comunidade homossexual. Como se houvesse algo a provar, como se partisse do pressuposto que há uma inferioridade nesse casamento, mesmo que agora legalizado. O casamento entre pessoas do mesmo género não é uma experiência a necessitar de estágios ou comprovativos temporais.

A opinião de JAS está para além da intolerância básica. É um texto de alguém que simplesmente não percebe a diferença e que não concebe que ela exista. Ainda há a noção, nas suas palavras, que a homossexualidade é uma anormalidade e o vocabulário primitivo que ao casamento homossexual emprega é disso exemplificativo. Mais, o tom jocoso do engraçado sem graça que vai repetindo a piada do casal e do marido e mulher é boçal e grosseiro, como aliás quer o seu estilo jornalistíco quer a sua escrita. De cada vez que uma voz deste tipo de conservadorismo se dá ao trabalho de ser sincero, o discurso não engana. Não admira que a maioria viva escondida por discursos vazios e aparências falsas. Para quem gosta tanto de Jorge Amado, há que relê-lo melhor.

Memória curta

Há alguns meses, Louçã, entre outros, tentou trazer para o debate público a necessidade da renegociação da dívida. Entre acusações de irresponsabilidade e de caloteiro, a verdade é que esses meses passados, e apesar de chumbada a proposta do PCP, o debate instalou-se e há uma larga gama de economistas de todos os campos a defender a impreterebilidade da medida. A dúvida sobre a questão pode manter-se nestes tempos em que todos são comentadores públicos de economia. Mas o que é realmente esclarecedor do modo de fazer politica é a forma como o discurso politico incorporou esta expressão e a tornou discutível quando há poucos meses todos faziam crer que a renegociação era impensável. Até o taxamento de heranças e doações, também proposto na altura pelo BE, é agora defendido pelas vozes mais impensáveis. Mas, também aqui, as vozes do costume chegam-se à frente a desdizer a medida. Outros que sabemos ao que vêm.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Um pouco do braço a torcer

Se o SNS tem de entrar na redução da despesa - porque já entra na contenção de custos - seria melhor começar por uma das fatias com maior lucros. À moda de Buffett.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Contra-discurso

Uma entrevista a ler, por um dos que mais tem lutado contra o discurso austeritário dominante, o tal que nos quer fazer crer que a ciência económica mais não é que a gestão de compras de uma dona de casa.

domingo, 7 de agosto de 2011

Tempos Perigosos

Há um argumentário eurocéptico que aqui e ali chega à superfície, emergindo pela porosidade de não ter que entender a vastidão dos fenómenos, constituindo na verdade um simulacro de ideia:

O problema não é económico, é político. E qual a natureza deste problema? É inter-nacional, internacional. Trata-se portanto de um problema de coordenação, depois de coesão, quem sabe de união, enfim de identidade. A realidade económica assegura uma pressão constante sobre as soluções políticas, de tal modo que ou se leva uma ideia ao fim ou mais vale nem iniciá-la. A bifurcação europeia não é seguir definitiva e irreversivelmente a via do federalismo ou não, mas sim federar-se ou desmembrar-se totalmente.

(Note-se que o problema poderia ser outro: como queremos viver. Mas o problema é, afinal, com quem queremos viver? Com a Europa ou sem ela?)

O problema não é político, é económico: a viabilidade da moeda única assenta em pressupostos teóricos nunca completamente cumpridos, e os fundos estruturais da UE falharam muito naturalmente em corrigir as assimetrias competitivas intra-europeias; a valorização do euro resulta do desempenho económico do centro europeu, e consequentemente dos seus padrões de especialização, do seu investimento e do seu consumo – sendo o mesmo euro que permite criar o jogo de espelhos entre a balança comercial excedentária alemã e a deficitária da periferia europeia; o débil crescimento económico da Europa e dos EUA dificilmente se alterará enquanto a China for bem sucedida em manter a sua moeda artificialmente desvalorizada.

O problema é económico-político: os factores económicos que tornam absolutamente atávico o Estado Previdência europeu, a impotência bélica que distingue a União Europeia da sua congénere americana, a falência de uma certa ideia de comum, a ressaca de um consenso europeu que foi desenhando instituições à revelia das democracias que organicamente se constituíram na Europa Ocidental, tudo concorre para este estado actual onde nações soberanas já o não são (aos poucos, o Mediterrâneo) e outras, sendo-o, destas são dependentes (o centro europeu).

A Europa escolhe renegar os instintos que lhe permitiram, mesmo que belicosamente, ir construindo uma sociedade que espirrou os seus mais distintos traços para todas as nações do mundo. E enquanto estas, conjugando o progresso europeu com os seus próprios caracteres, começavam a jogar o mesmo jogo no mundo, a Europa do pós-guerra abandonava uma certa ideia de si própria em favor da cultura americana, institucionalmente herdada no pós Segunda Guerra. Mas aquilo que, no imediato, parece uma bela ideia, pode resultar em rotundo fracasso quando transposto para um continente que, relembre-se, é cada vez mais velho e ignorante.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Por uma visão não economicista da saúde (ou o problema de Paulo Macedo) - II

O problema desta visão sobre a saúde que nos querem impôr - quer com a falácia de que o SNS é um dos piores serviços públicos quer com a necessidade súbita de cortar nas despesas - é tanto um problema de conteúdo como de forma. O problema da forma é conhecido e há muito que os adágios populares avisam para o lobo vestido de cordeiro. Porque quando nos dizem que há que cortar subitamente na despesa e a todo o custo - e não há, reitero, nenhum profissional no SNS que o não saiba ou tente executar - ninguém menciona nem os tremendos lucros que alguns grupos privados tirarão disso nem as consequências a médio-longo prazo nos serviços médicos prestados aos portugueses. À conta da crise - que não foi certamente criada pelo SNS - vingou a noção de que é preciso reduzir custos, mas escamoteia-se o que, em medicina, não pode ser esquecido. A boa prática médica. A presunção do melhor tratamento do doente e do tratamento equitativo entre doentes. É por isso importante ter atenção quando se um ministro da saúde anuncia, por exemplo, que pretende dados mensais sobre o desempenho das instituições de saúde com base em indicadores como a qualidade assistencial medida pela demora média. Tudo parece bem na lógica mercantilista que lhe é conhecida e até como notícia de jornal, mas esquece o essencial. A ideia de que a qualidade assistencial é medida pelo tempo de espera leva à redução do tempo de assistência média. Ou seja, um médico que tinha 20 minutos para olhar para um doente, passa a ter 10. Como se um serviço de urgência, uma consulta ou um centro de saúde fossem uma qualquer instância burocrática, estabelece-se a ideia de que fazer mais é produzir mais e é trabalhar melhor. E tudo soa bem naqueles 20 ou 30 segundos que dura a notícia. Mas é importante lembrar que ver mais doentes não é ver melhor os doentes. Pelo contrário, um médico com menos tempo para atender o seu doente é alguém que não lhe vai poder prestar o melhor atendimento possível e a quem será mais fácil deixar passar algo na anamnese desse doente. O que é importante sabermos é que isto não é um problema de forma - eles falam bem e são convincentes. Isto é um problema de conteúdo - eles estão errados.

A esposa de César

Em resposta às criticas de sobreposição de interesses pela sua longa ligação ao Grupo Mello, Nogueira Leite faz saber que estará ausente da sala quando se discutirem decisões relativas ao grupo onde previamente trabalhava. "A suspeita é legitima se houver matéria de facto. Se eu não estiver envolvido, como não estarei, não há matéria de facto". Como se as decisões se tomassem extrictamente no meio físico de uma sala e fossem todas escritas em acta. Como se não houvesse influência, pressões e bastidores. Chegámos a um ponto em que parece já nem interessar simular alguma ética. Se se pode escapar, chega.