sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Libertar o Presente



Nas suas Teses sobre a Filosofia da História, já Benjamin avisava que “o vício secreto da social-democracia, o conformismo, não afecta apenas a sua táctica política, mas também as suas perspectivas económicas.” Mesmo recordando que a social-democracia alemã dos anos 30 é consideravelmente diferente da que hoje resiste, não é difícil encontrar nesse conformismo a fonte do prolongado namoro que esta tem mantido com a expansão do liberalismo económico. Mas, de certo modo, e porventura devido ao período de excepcional progresso económico nas economias desenvolvidas do pós-guerra, a social-democracia europeia tem vindo a demonstrar um extraordinário atraso em responder à crescente dificuldade do Estado Social em sobreviver no seio do capitalismo globalizado, que acelera o tempo (e multiplica o mundo, ou não perseguisse perpetuamente factores de produção) mais rapidamente que os mecanismos redistributivos do Estado Social o podem desacelerar. Para usar uma imagem tão grata a todos aqueles que fazem da teoria económica um ramo da física teórica,  o desfasamento entre os fluxos de capitais e os fluxos de redistribuição impossibilita que os segundos alcancem nesse processo o cancelamento ou atenuação das desigualdades na acumulação de riqueza.
A social-democracia que, recordemos, foi viabilizada por uma agregação de visões políticas e ideológicas distintas, criou enfim as condições para o fortalecimento de tendências que têm vindo a minar a efectividade real dos sistemas de impostos, ao mesmo tempo que criou o terreno para o afrouxamento dos mecanismos que se encontram a jusante desse sistema redistributivo: a negociação entre sindicatos e patronato, o enquadramento jurídico das relações entre empregador e trabalhador e a regulação dos mercados e do movimento de capitais.
Pode ser encontrado um exemplo deste abandono em discussões, na academia e fora dela, acerca da distribuição temporal do factor trabalho. Já em Adam Smith, encontramos as raízes do pensamento económico que propõe a intensificação da especialização do trabalho e das trocas comerciais não para atingir a perfeita alocação de recursos, mas a expansão da produção, requisito fundamental para a diminuição do trabalho exasperante ou exaustivo (“the toil and trouble”). A novidade reside na solução: partindo do consenso generalizado de que este factor se encontra mal distribuído na sociedade portuguesa, e agravado desde o início da crise devido ao aumento do número de desempregados, do número de trabalhadores em regime de trabalho parcial, e também do número de trabalhadores que trabalham mais horas extraordinárias (as estatísticas do INE em relação à pretensa “recuperação” do mercado de trabalho revelam bem estes fenómenos), alguns sectores propõem a reorganização avulsa da distribuição da carga horária. Ora, esta visão ignora, na sua simplicidade, que as pessoas procuram cargas horárias mais elevadas exactamente para que possam atingir um nível de rendimentos superior, e consentâneo com os seus gastos.  A simples reconfiguração da distribuição do trabalho resultaria em transferências de rendimentos entre trabalhadores, melhorando uns mas piorando a condição de outros.
Para evitar este tipo de conflito, o objectivo da equalização da distribuição do trabalho deverá ser associado ao aumento do rendimento associado a este factor, que terá necessariamente de vir da remuneração ao factor capital. Por outras palavras, é preciso inverter a tendência de crescimento da importância do capital na distribuição de rendimentos. E partindo do pressuposto que a análise empírica de Piketty é fiável, então a social-democracia, que usou as políticas de redistribuição como moeda de troca para conceder maior liberdade de movimento aos factores de produção e aos agentes económicos, enfrenta agora uma nova crítica, a juntar ao lume não tão brando dos descontentes com o Estado Social: este, ocupado em combinar liberdade de oportunidades com a ascensão meritocrática, foi soltando as forças de acumulação de capital que ameaçam hoje, como no princípio do século XX, a promessa de progresso material para aqueles cujo mérito está no seu trabalho e nas suas ideias.
De resto, um dos paradoxos da actual vida político-económica, que perpassa quase todas as notícias, consiste na utilização do futuro como caução que impende sobre qualquer política do presente: somos permanentemente avisados do que nos acontecerá se não actuarmos conforme esperado. A consequência extrema da aceitação acrítica desta política do diferimento, de que vamos vendo sinais mais nítidos, é a de que, para não prejudicar o futuro, teremos de aceitar grandes sacrifícios no presente. Mas quanto mais o futuro é despudoradamente usado para sancionar uma perda actual, mais nos esquecemos que o presente determina largamente o porvir (veja-se como trocamos investimento em educação ou ciência pela promessa de financiamento, sob a égide das agências de notação financeira); e também que o passado, por via do regresso do capitalismo patrimonial – que em Piketty é revelado em todo o seu esplendor –, devora o futuro.
Mas nem o autor destas linhas escapa à força da Prognose, o de nos ser pedido que olhemos para a frente, tarefa que alguns querem desempenhar sem olhar para trás ou, usando novamente um conceito de Benjamin, para a “tempestade” que atravessámos até chegar aqui. Em suma: para que não vivamos num presente comprimido entre um passado que devora o futuro, e um futuro que actua como grande disciplinador, os sociais-democratas e outras forças progressistas deverão unir-se na recuperação de um ideal pragmático: o de estabelecer novas formas de controlo do político sobre o económico, e recentrar as discussões económicas nas noções de propriedade e (relativa) igualdade material, que legitimaram as ordenadas sociedades democráticas europeia e americana do pós-guerra – não se assustem os mais receosos, que isto é o que encontramos em John Rawls, o filósofo da sociedade liberal americana por excelência. Pois, em resposta a quem vê conflitos entre domínios, eu vejo o definhamento da disciplina que urge resgatar: a Economia Política. Porque, adulterando seriamente Musil, nós não temos economia a mais e política a menos, pomos é pouca política nas questões da economia.

(artigo publicado no DE)